24
Jul 09
publicado por aquiagorasempre, às 12:39link do post | comentar | ver comentários (17)

Há escritores que cumprem um destino ideal de escritor.Além do estereótipo do rato de biblioteca sempre mergulhado em livros ou do artesão da palavra burilando à exaustão sua obra,existem aqueles que vivem o ideal do escritor como paixão,como razão de viver:que levam às últimas consequências uma decisão intelectual de unir vida e obra.Na história da literatura universal são vários os que escolheram a escrita como farol de vida e que a misturaram de tal forma com essa própria vida que seria impossível separar tal escritor desse fluxo constante que é gerado pela vivência da literatura como destino.Balzac,Dickens,Victor Hugo,Joyce,Virginia Woolf,e possivelmente acima de todos o grande e inimitável Jorge Luis Borges,passaram com tal intensidade,com tal brilho corruscante pela literatura e pela alta cultura,que seria impossível não defini-los como mestres supremos de seu ofício,ofício esse conectado indissoluvelmente à vida em si mesma.
Em nossa época conectada em tempo real,uma impossibilidade surge no horizonte:a impossibilidade da alta cultura ,da alta literatura ser vista como uma possível salvação pessoal.Muitos de nós talvez se perguntem :- essa possível salvação terá existido em alguma época da humanidade?Um Balzac atormentado com o destino de suas personagens ,um Charles Dickens deprimido por ter de 'matar' uma personagem ou uma Virginia Woolf vivendo vida literária /vida real em uma amálgama ,parecem expectros de um tempo distante.Mas creio que em nosso tempo,escritores continuam buscando explicar o mundo interior,independentemente de quaisquer eventos históricos externos.
Na Literatura Brasileira,entre os vários escritores que fizeram de seu ofício sua razão de viver,gostaria de citar a sempre presente Clarice Lispector,de quem Guimarães Rosa uma vez disse'que a lia não para a literatura,mas para a vida';e o poucas vezes citado (e quase nunca como merece),Caio Fernando Abreu .
Entre os muitos escritores que se formaram nos anos 60,Caio aparece como um imbatível corisco de luz,um desses escritores para quem a literatura era antes de qualquer coisa,uma missão,algo como uma idéia platônica,romântica,indissociável de sua própria vida(vide suas Cartas ).
Desde seu primeiro livro-"Inventário do (Ir)remediável (1970),fortemente influenciado por Clarice,Caio misturou com maestria a contracultura,o sonho hippie desfeito,a 'libertação'pelo livre uso do corpo,da sexualidade,o fluxo da consciência,a loucura,a amargura tantas vezes existente nas relações humanas,a solidão inerente a todos nós:aliando a esses elementos uma feroz crítica social e especialmente psicológica,da coisificação do ser humano;uma análise contundente dos mecanismos mais repressores da sociedade brasileira e ocidental.
Em sua obra destaco "Morangos Mofados"(1982),um marco dos anos 80,hoje uma obra premonitória ,que analisou o fim do sonho da contracultura,a ressaca mental dos anos 70 e o mergulho inicial no hedonismo desenfreado dos anos 80,cobertos de ponta a ponta pela sombra aterrorizante da AIDS,que pôs o ponto final e talvez definitivo,a qualquer 'sociedade alternativa'.
Seus contos "Pela Noite" e "Aqueles Dois" são dos marcos da temática gay na literatura brasileira,nadando profundamente na análise psicológica e na crítica a uma sociedade pretensamente liberal,mas ainda cheia de dispositivos repressores crueis pronto a serem acionados a qualquer mudança real de paradigma.
"Onde Andará Dulce Veiga"(1990-prêmio da Associação Paulista dos críticos de Arte),é além de uma homenagem ao 'país das cantoras',um mergulho fundo num Brasil tenso e muito vivo(o das grandes metrópoles),uma história de perdas e buscas,uma análise minuciosa da hipocrisia social brasileira,uma evocação da loucura que subliminarmente domina todo o tecido social.Dedicado 'à memória de Nara Leão,e a Odete Lara,Guilherme de Almeida Prado,Cida Moreyra e todas as cantoras do Brasil',é a história da fictícia cantora Dulce Veiga(um mistura de Elizeth,Elis e Dalva de Oliveira),que no auge da fama simplesmente desaparece sem deixar vestígios.Em uma São Paulo com ares da Los Angeles de Blade Runner,Caio nos leva numa ação crescente e frenética de pistas falsas,reviravoltas e todo tipo de situações e criaturas bizarras,até o desfecho lindíssimo e inesquecível.Obra de maturidade,Dulce Veiga é uma obra marcante ,testemunha de um Brasil muitas vezes barbáro(no pior sentido possível),mas que tantas vezes nos oferece pessoas e surpresas que mal acreditaríamos existir.Leiam e confiram.
imagem daqui

16
Jul 09
publicado por aquiagorasempre, às 09:09link do post | comentar | ver comentários (41)
Amo-te tanto,meu amor...não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim,de um calmo amor prestante
E te amo além,presente na saudade
Amo-te enfim com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho,simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtudes
Com um desejo maciço e permanente.

E de ter amar assim,muitoe amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

11
Jun 09
publicado por aquiagorasempre, às 13:05link do post | comentar | ver comentários (4)
Repousarei na tua memória
A minha imagem.
Quando chegar a noite
E o vento me arrastar para os largos espaços,
Repousarei na tua memória a minha imagem.
E estarei em ti pousado,
Como a cor na superfície dos mares;
E estarei em ti como a emoção nas lágrimas;
E estarei em ti como a saudade nos olhos imóveis.
Irá da minha imagem
Para a tua compreensão
O sentimento do meu mistério,
O ignorado segredo dos movimentos do meu ser.
E ficarei em ti,iluminado
E distante,
E serei como a luz inútil,
Como a lanterna balançando
Nas pequenas estações passadas,
Nessa longa viagem sem termo.

14
Mai 09
publicado por aquiagorasempre, às 15:22link do post | comentar | ver comentários (6)
Se os nossos olhos te enxergassem,rosa,

E não só:"É uma rosa"nos dissessem

Na vulgar gradação que nunca esquecem,

Que epifania na manhã tediosa!


Se eles vissem ao vê-la,cada coisa

E não seu nome,se afinal pudessem

Fugir da furna abstrata onde destecem

A vida,um morto partiria a lousa


Maçiça de aqui estar.Flor,nuvem,muro,

Árvore,que é uma só e não tal nome,

Se tudo entrasse o corredor escuro


Que há em nós,algo de exato se ergueria

Algo que pára o tempo e o consome,

Que alveja a noite e entenebrece o dia.


(de "Em Sonho")

11
Abr 09
publicado por aquiagorasempre, às 12:02link do post | comentar | ver comentários (4)

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas,pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco;e aves pairassem

no céu de chumbo,e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior,vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.


Abriu-se a majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspecção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar


toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério,nos abismos.


Abriu-se em calma pura,e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter suado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos,em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mística das coisas.


(Carlos Drummond de Andrade)

07
Abr 09
publicado por aquiagorasempre, às 08:46link do post | comentar | ver comentários (2)
Não é o de Blake,em chamas
nem o que entreviu Borges
através das barras,talvez até
impressas no pêlo,temperando
o ouro do ataque e do remanso
interrompido pelas tiras de sombra
indo e vindo,entre o mel e a fera.
Mas o que sobrou na Ásia ou África
-fogueira sozinha se extinguindo
em sua fúria e instinto sem a mão
que contorne a ferocidade da garra
e do olhar extremo,ou a lembrança
do seu nobre metal aceso,sol aberto
mesmo dentro da cegueira,agora
cada vez mais riscado e escurecido
pelas linhas do grafite e do carvão.

03
Abr 09
publicado por aquiagorasempre, às 09:00link do post | comentar

Clarice

Veio de um mistério,partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.

Ou o mistério não era essencial.Essencial

Era Clarice viajando nele.


Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,

onde a palavra parece encontrar

sua razão de ser,e retratar o homem.


O que Clarice disse,o que Clarice

viveu para nós

em forma de história

em forma de sonho de história

em forma de sonho de sonho de história

(no meio havia uma barata ou um anjo?)

não sabemos repetir nem inventar.

São coisas,são jóias particulares de Clarice,

que usamos de empréstimos,ela é dona de tudo.


Clarice não foi um lugar -comum,

carteira de identidade,retrato.

De Chirico a pintou?Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice

só se pode encontrá-lo atrás da nuvem

que o avião cortou,não se percebe mais.


De Clarice guardamos gestos.Gestos,

tentativas de Clarice sair de Clarice

para ser igual a nós todos

em cortesia,cuidados materiais.

Clarice não saiu,mesmo sorrindo.

Dentro dela

o que havia de salões,de escadarias,

de tetos fosforecentes e longas estepes

e zimbórios e pontes do Recife em bruma envoltas

formava um país,o país onde Clarice

vivia,só e ardente,construindo fábulas.


Não podíamos reter Clarice em nosso chão

salpicado de compromissos.Os papéis,

os cumprimentos falavam em agora

em edições,possíveis coquetéis

à beira do abismo.

Levitando acima do abismo Clarice riscava

em sulco rubro e cinza no ar e fascinava-nos.

Fascinava-nos apenas.

Deixamos para compreendê-la mais tarde.

Mais tarde um dia...saberemos amar Clarice.

(Carlos Drummond de Andrade)

31
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 08:50link do post | comentar | ver comentários (3)
Sentia o cheiro
da chuva;
o grito dos pássaros,
a consistência dos musgos
antiqüíssimos.
Tentava entender a mecânica
das gotas ácidas
alinhadas,uma a uma,
o silêncio cinza das nuvens
onde o que restou do sol
pousava.
E o corpo sofria
feito ave sem asas:
de sede,se afogava.

29
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 12:20link do post | comentar | ver comentários (6)
a Ricardo Vieira Lima

Acorda bem cedo o homem
da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.

E eis que a vida não é mais
nem triste,nem só,nem vã.
É doce:cheira a goiaba
e brilha como romã.

orvalhada.E ele caminha,
o homem,com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.

Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã

é a própria alma do homem
da casa de telha vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.

27
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 10:33link do post | comentar
nascer
é ser novinho em folha
e já deixar cicatriz

viver
é cobrir os outros
de cicatrizes
e ser coberto

mas nem tudo
são cicatrizes

algumas incisões
definitivamente
não se fecham

por isso
aliás
morremos

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