24
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 08:58link do post | comentar

Ora,a alegria,este pavão vermelho,

está morando em meu quintal agora.

Vem pousar como um sol em meu joelho

quando é estridente em meu quintal a aurora.


Clarim de lacre,esse pavão vermelho

sobrepuja os pavões que estão lá fora.

É uma festa de púrpura.E o assemelho

a uma chama do lábaro da aurora.


É o próprio doge a se mirar no espelho.

E a cor vermelha chega a ser sonora

neste pavão pomposo e de chavelho.


Pavõs lilás possuí outrora.

Depois que amei este pavão vermelho,

os meus outros pavões foram-se embora.


22
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 18:26link do post | comentar | ver comentários (2)
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

21
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 11:32link do post | comentar

Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,que penso ver,efêmera,
toda a Beleza em lágrimas,

por ser bela e ser frágil.


Meus olhos te ofereço:

espelho para a face

que terás no meu verso,

quando,depois que passes,

jamais ninguém te esqueça.


Então de seda e nácar,

toda de orvalho trêmula,serás eterna.E efêmero

o rosto meu,nas lágrimas

do teu orvalho...E frágil.

19
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 09:39link do post | comentar | ver comentários (3)



FELICIDADE CLANDESTINA




Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

14
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 18:49link do post | comentar | ver comentários (2)

eu sou como eu sou

pronome

pessoal intransferível

do homem que iniciei

na medida do impossível


eu sou como eu sou

agora

sem grandes segredos dantes

sem novos secretos dentes

nesta hora


eu sou como eu sou

presente

desferrolhado indecente

feito um pedaço de mim


eu sou como eu sou

vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim



10
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 09:49link do post | comentar

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho,meu Deus,era um homem.

(Rio,27 de dezembro de 1947)








02
Mar 09
publicado por aquiagorasempre, às 09:32link do post | comentar

Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Petre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele foi.No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.Sua raça de gente está aos poucos sendo exterminada. Poucos exemplares humanos restam dessa espécie que, não fosse o sonso perigo da África, seria povo alastrado. Fora doença, infectado hálito de águas, comida deficiente e feras rondantes, o grande risco para os escassos Likoualas está nos selvagens Bantos, ameaça que os rodeia em ar silencioso como em madrugada de batalha. Os Bantos os caçam em redes, como fazem com os macacos. E os comem. Assim: caçam-nos em redes e os comem. A racinha de gente, sempre a recuar e a recuar, terminou aquarteirando-se no coração da África, onde o explorador afortunado a descobriria. Por defesa estratégica, moram nas árvores mais altas. De onde as mulheres descem para cozinhar milho, moer mandioca e colher verduras; os homens, para caçar. Quando um filho nasce, a liberdade lhe é dada quase que imediatamente. É verdade que muitas vezes a criança não usufruirá por muito tempo dessa liberdade entre feras. Mas é verdade que, pelo menos, não se lamentará que, para tão curta vida, longo tenha sido o trabalho. Pois mesmo a linguagem que a criança aprende é breve e simples, apenas essencial. Os Likoualas usam poucos nomes, chamam as coisas por gestos e sons animais. Como avanço espiritual, têm um tambor. Enquanto dançam ao som do tambor, um machado pequeno fica de guarda contra os Bantos, que virão não se sabe de onde.Foi, pois, assim que o explorador descobriu, toda em pé e a seus pés, a coisa humana menor que existe. Seu coração bateu porque esmeralda nenhuma é tão rara. Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros. Nem o homem mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça. Ali estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar. Foi então que o explorador disse, timidamente e com uma delicadeza de sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz:— Você é Pequena Flor.Nesse instante Pequena Flor coçou-se onde uma pessoa não se coça. O explorador — como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade a que um homem, sempre tão idealista, ousa aspirar — o explorador, tão vívido, desviou os olhos.A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez "porque me dá aflição".Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor prevenir que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma bondade perigosa estava no ar.Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir — com uma vaguidão que só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento — levou-a a sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça não tem limites".Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:— Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!— Mas — disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa — mas é tristeza de bicho, não é tristeza humana.— Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.Foi em outra casa que um menino esperto teve uma idéia esperta:— Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? quando ele acordasse, que susto, hein! que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela! a gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo para ele", resolveu olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranqüilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que devia ser "escura como um macaco". Então, olhando para o espelho do banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:— Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga — disse o pai sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. — Nesta casa tudo termina em briga.— Você, José, sempre pessimista — disse a mãe.— A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenezinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze anos.O pai mexeu-se atrás do jornal.— Deve ser o bebê preto menor do mundo — respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha grande!— Chega de conversas! — disse o pai.— Você há de convir — disse a mãe inesperadamente ofendida — que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.E a própria coisa rara?Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração — quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar — enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.É que a menor mulher do mundo estava rindo.Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranqüilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava atrapalhado.Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador — pode-se mesmo dizer seu "profundo amor", porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza — pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.Pequena Flor respondeu-lhe que "sim". Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo. Pois — e isso ela não disse, mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram — pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.Marcel Petre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve que se arranjar como pôde:Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz..


(de Laços de Família)







16
Fev 09
publicado por aquiagorasempre, às 09:29link do post | comentar

Foi quando saía do metrô,na estação da rua 47 com a quinta avenida,que viu o gigantesco outdoor.Uma moça loura e sorridente de maiô azul parada ao lado de uma piscina de água translúcida como numa pintura de David Hockney.A luz intensa de um verão impossível e imaginário cobria a grama,as árvores,o mar ao longe.Seu rosto levemente eslavo emanava a tranquilidade falsa dos que estão sempre felizes.os olhos muito azuis olhavam firme,num desafio em que havia alguma arrogância e uma ironia fina,como se fosse dizer-você nunca vai viver uma vida assim.
Parada na calçada,no meio da multidão quase compacta,das buzinas,do amarelo corruscante dos táxis,ficou olhando encantada a foto imensa.O painel tomava toda a lateral de um prédio falso rococó,cheio daquelas torrezinhas que são o charme e o ridículo de Nova York.Era ela.Era a sua foto,exposta para a cidade inteira(e porque não para o mundo?).O mundo da Vogue,Elle,Marie Claire,OG,L'Éternel,Mode.Um mundo de papel,de rotogravuras,.de dinheiro,do que sempre se quer e nunca se alcança.
De repente começou a rir perdidamente,num crescente sincopado.Cristo na cruz!Depois de tudo que passara,de todas as frustações e pequenos tormentos que por muitos anos tinham constituído sua vida,algo realmente estava acontecendo.
Uma onda de júbilo a envolvia quente,quente.Era aquela talvez,uma pequena amostra de alguma felicidade futura?Do tanque a Nova York não era mais ficção,nome de biografia fajuta,conto de fadas,mesa redonda do canal brega.Seus medos mais sinceros e por isso mesmo,mais profundamente enterrados,lentamente emergiam para sere mais uma vez enfrentados.O tempo das vacas magras,da carne roída até o osso,do lamber beirada de penico:todos os lugares comuns do anonimato e da pobreza se desvaneciam em sua mente.Porque o mundo existia de uma forma muito mais intensa e perturbadora,percebeu então.Estar no mundo e viver eram coisas muito distintas.
Não sabiam onde nascera,como era a casa em que vivera por muitos anos.Sórdido,agradável,pequeno,tranquilo,pobre-não eram só palavras?Queria provar a si mesma que tudo realmente passava,que as feridas da alma e do coraçao lentamente se fechavam.
Margarete,Iná,Dona sininha,Marquito:todos esses personagens de sua infância espectral de borralheira,agora moravamem um outro planeta.Aquele seu novo planeta de bolsas de dez mil dólarese edifícios de vidro fosco,ao mesmo tempo tão frio e tão quente,era onde deveria ter sempre vivido.Aquele fim de mundo do Paraná de onde viera,com suas casinhas de madeira que pouco a pouco se descoloriam com a chuva,era o lugar para onde nunca mais voltaria.Ela tinha certeza absoluta disso,porque muitto maior que sua ambição era seu horror ao passado.

12
Fev 09
publicado por aquiagorasempre, às 10:25link do post | comentar | ver comentários (2)

Medo da Eternidade

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Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.

09
Fev 09
publicado por aquiagorasempre, às 10:17link do post | comentar
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O timbre aveludado e a mão intensa


Foi justamente nesse dia em que crianças brincavam ao redor da minha casa na raiz de uma colina ao norte da Califórnia, foi justamente nesse dia aí que acordei com a gritaria de crianças endiabradas ao redor da minha casa, sim, no meu pátio todo irreal tamanha a primavera pelos jardins da baía de San Francisco, foi nesse dia sim, eu bem me lembro, que ao tomar a primeira água da manhã na cozinha já ensolarada cheguei à conclusão de que precisava me apaixonar. Saí de casa em meio à algazarra infantil, com os livros do curso que eu dava na Universidade de Berkeley numa das mãos, na outra uma velha sacola de supermercado atulhada de roupas para a lavandaria. A porta da lavanderia fez como sempre tlim-tlim quando a abri. A bela chinesa com seu inglês todo arrevesado perguntando-me o mesmo de sempre:

- Can I help you?

É... eu chegava com a sacola atulhada de roupas para lavar e não dizia nada, apenas esperava a sua voz de chinesa recatada, uma voz que parecia pertencer a uma natureza recém-aflorada para tão-só aquilo: estar ali e não em outro lugar, a perguntar no seu inglês parco aquelas linhas sem muita sustentação, quase rarefeitas, linhas que se apresentavam como vindas de um estado de abandono que eu ainda não pudera imaginar.

- Can I help you?

A água que havia pouco eu bebera como que escorregou de novo dentro de mim, uma água matriz, de uma fonte escondida - e decidi o que até então nem tinha calculado, como se desta fonte imemorial tivesse escorrido também esse meu tonto gesto: levantei a sacola de ponta-cabeça e as minhas roupas se espalharam sobre o balcão, afogando uma das mãos da bela chinesa. Senti a minha mão também por ali, esquecida debaixo daquele monte de roupas, toalhas, lençóis. Os tecidos sobre nossas mãos exalavam o pesado cheiro de uso. Avancei meu braço bem devagar, quase um caranguejo. As roupas sobre o balcão nem se mexeram. Cobri a mão da bela chinesa. Que não a retirou.

- Não tem vontade de conhecer o Brasil?

A voz me saiu em sussurro mas num inglês pausado.

- Passei a infância em São Paulo.

Ela contou a novidade entrando num português de razoável pronúncia brasileira, ao mesmo tempo que abria pela primeira vez um sorriso franco para mim. As nossas mãos suavam muito debaixo de cheiro de cerrado uso daquelas roupas, toalhas, fronhas, lençóis.

- Busco quando?

- Amanhã...

A porta fez tlim-tlim. Entrava um homem com duas sacolas transbordantes. O homem me olhou com o ar... não sei bem... olhar de quem pescara alguma coisa ali. Passei a mão pela minha calça, me olhei no espelho: levemente excitado... Diante do espelho fiquei alguns segundos, até considerar que no meu corpo já se apagara qualquer vestígio do momento anterior. Saí dizendo até amanhã. Na calçada repeti como se em gota a gota: A-té-a-ma-nhã. No café ao lado pedi um chá preto. Então pus-me a olhar cada coisa daquele recinto como se fosse a última, sei lá, e meio atarantado por estar a viver uma lentidão extremosa que aquele país costumava rechaçar, falei baixinho, supliquei: me dê saúde até amanhã, em surdina sim, olhando agora aqueles estudantes debruçados sobre mesas a ler e escrever. Estavam todos tão absortos em seus estudos que ninguém ouviu a minha voz arisca a implorar, a rezar talvez. Me dê saúde até amanhã, repeti um pouco mais alto. Uma estudante pareceu ter ouvido: levantou a cabeça da página, olhou-me e, sinceramente, era isto o que estava acontecendo ali, exatamente isto, e ali: a estudante a me olhar era a mesma mulher da lavandeira, sim, a chinesa que eu conheci de cor, a me olhar. Quem sabe gêmeas? Sondei com meus botões. Me dê saúde até amanhã veio-me agora um tanto alto, no meu velho português. A chinesa, como se sofresse um atordoamento, explodiu uma risada, sem pudores diante daqueles estudantes com implacável performance de concentração. Ela gargalhou com seus dentes perolados, como se euforia e tempestade. E eu não fiquei. Fui tomando meu chá preto no copo de plástico pelas calçadas, a cantar baixinho o hino do meu clube da mocidade que me vinha inteiro agora, começando assim: me dê saúde até amanhã, saúde que garanta o timbre aveludado e a mão intensa, me dê, me dê saúde eu peço, até amanhã... E o mesmo me acontecia ainda: olhava cada coisa como se o possível encanto delas fosse durar só até a próxima esquina. Olhava cada coisa como se tudo me pertencesse, parte integrante de mim, como o fígado, a unha, pescoço, pé. Posso morrer, meditei. E de fato logo depois senti uma ferroada no coração. Só me deu tempo de trazer a mão ao peito e pensar com fulminante convicção que o resto da história realmente não me interessava mais, que estava desimpedido da inércia da duração, alguma coisa assim: que eu já tinha atravessado uma boa extensão, que agora só me interessava mesmo era boiar como já fazia naquele instante sobre a superfície do dia, a ponto de poder mirar o sol de frente, cegar-me, exaurir-me, até entrar de vez no sono molecular. Escuta aqui, não foge, não terminou, ainda tenho o que contar, ouvir, olha ali aquele ponto ínfimo a flutuar rente ao tronco, não te aproxima muito que com a força da tua respiração ele se afasta para longe, voa...

A moça chinesa abre a porta da lavanderia, senta-se no degrau, canta a melodia de seus ancestrais. Quem foi, quem é, ela já não sabe. Sabe de um sonho amável, iluminado por uma lua ninfa, mas que já passou, já derreteu, evaporou que sabe...

Berkeley, maio de 98

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