O garoto que está estirado numa esteira,em um desses apocalípticos campos de refugiados do Sudão,há um bom tempo já quase não se move.A mãe,esquelética,apática,está deitada a seu lado,os olhos enormes e vazios,os seios murchos.Na vila-favela-acampamento,uma multidão circula.Há cabanas de pau-a-pique,choças de palha,mas a maioria se estende pelo chão mesmo,num burburinho indistinto,em meio ao calor e aos insetos.Inacreditáveis(por deixarem o conforto da "boa " Europa) profissionais dos "Médicos sem Fronteiras"circulam em meio às pessoas,olhando um e outro,fazendo o que podem em meio ao caos.È isso mesmo,a velha palavra:o horror,à la Joseph Conrad via Apocalipse now até o REAL.
De repente,um ronco de motor.Um avião da cruz vermelha sobrevoa o acampamento.O menino e a mãe viram-se na direção do ruído que deve retumbar em seus ouvidos.A enorme cruz de um vermelho berrante pintada no bojo da aeronave significa uma coisa só :possibilidade de comer,e infundir um mínimo de força em corpos exaustos,inanimados,em mentes estáticas e olhos que já viram o inimaginável.Paraquedas soltam caixas de leite em pó,biscoitos,latas de sardinha:presentinhos do ocidente apiedado e nauseado.
Na idade média,o imaginário ocidental era repleto do horror da vinda do "anticristo",para a formação do "império do mal".As constantes epidemias de peste,a fome crônica,a opressão constante e sistemática dos"poderosos",em nada diferem do que grande parte da Africa têm como cotidiano, diante do desinteresse,da apatia da Europa,que hoje,imersa na inércia do consumismo e do mercado total(que parece estar agora desmoronando),simplesmente se atem à rétorica estéril e meia dúzia de passeatas de bem intencionados.
Até o fim do século 18,a miséria e a opressão política e religiosa deram o tom na Europa.As cenas goyescas de um desses manuscritos medievais sobre a peste e a fome são assim:filmes modernos.Um parágrafo qualquer do New York Times ou do Le Monde ,documentários escandalizados de estudantes de Oxford,teses de doutoramento da Sorbonne,tours de celebridades a campos de refugiados,enquanto tiram fotos ,afagam bebês,e correm para tomar o avião de volta.Oh my God!É,o inferno pode ser mesmo aqui.Todos os dias lemos reportagens sobre a miséria da África,horrorizados assistimos ao desfilar dos quase-mortos no jornal da noite.Mas dentro de qual filme essas pessoas realmente se situam?O garoto continua deitado na esteira.E a câmera,em rápidos volteios,mostra as caixas de leite em pó,a lama desses absurdos campos.
Estamos cansados de saber de tudo isso.O ocidente precisa abandonar a retórica,a ganância obscena em que está atolado.Bondade e espiritualidade nada têm a ver com acreditar ou não em Deus.É preciso aproveitar esse momento caótico (que acho,mal começamos a viver),para mudar o rumo da nossa espécie,como seres em si,pensar em que queremos realmente nos transformar no futuro.
Em Abril de 1999,o mundo assistia ao massacre da Escola Columbine(subúrbio de Denver,Colorado).Dois estudantes,Eric Harris(18 anos) e Dylan Klebold(17),entraram armados na escola e assasinaram a sangue frio 15 alunos,ferindo outros 28,suicidando-se em seguida.Em mais uma tragédia anunciada,o massacre de Columbine colocou mais uma vez em evidência o polêmico tópico do controle de armas nos Estados Unidos,onde se pode comprar armas pesadas até pelo correio.Mas,além de toda a controvérsia sobre porte de armas,o caso Columbine indiretamente toca num ponto sensível da sociedade americana:a divisão social entre duas(hipotéticas e incompreensíveis)"castas"-"losers" e "winners".Hipotéticas porque carecem de qualquer explicação racional,incompreensíveis porque totalmente fora do contexto real da sociedade(mesmo em uma sociedade tão obsecada por dinheiro e sucesso como a americana).Os estereótipos mais cruéis de opressão social,como aquela velha história de nerds e atletas(os populares e o "resto"),acreditem,não existem só na sessão da tarde.Qualquer um que conheça ou tenha vivido nos EUA por algum tempo,sabem que essa polarização é real,e que também,o sofrimento desses"humilhados e ofendidos"é imenso.A sociedade americana(e a ocidental em geral),em que mais e mais o biopoder lança seus tentáculos,é também uma sociedade em que certos modelos são consagrados como ideais(o corpo ideal,o rosto ideal,o peso ideal,o comportamento sexual ideal,a inteligência ideal,etc) e os que não se enquadram,imediatamente descartados e condenados ao inferno do desprezo e da humilhação constantes.Os inúmeros massacres em escolas,são sempre perpetrados por aqueles considerados "losers",adolescentes(na maioria homens)com um histórico de "bullying",de desprezo e desconsideração constantes.Longe de se dizer que essas humilhações justificam um comportamento assassino,precisamos também tentar entrar na mente e no coração desses adolescentes humilhados,que veem no assassinato em massa ,uma hipotética vingança contra seus algozes.
Gus Van Sant(1952),é um diretor americano que longe das platitudes da maioria de seus compatriotas,encara seu país com olhos sempre(muito)críticos.Em sua obra prima-"Elefante"(2003),Van Sant,parte da tragédia de Columbine para fazer sua leitura da apatia e principalmente ,do absurdo conformismo social americano("conformismo bovino" na conhecida observação de Simone de Beauvoir).Palma de Ouro no Festival de Cannes(assim como melhor diretor),Elefante faz uma leitura não-linear de um dia aparentemente comum numa escola secundária ,claramente inspirada em Columbine.O cotidiano estudantil reflete a sociedade,e claro,há os que sempre perdem e aqueles que aparentemente são só caixa de ressonância dos preconceitos mais absurdos e incompreensíveis.O trabalho de Gus Van Sant está longe do realismo do cinema americano convencional.Em Elefante,há,por exemplo,vários versões de um mesmo fato,em que,em subtraindo uma certa verossimilhança realista,o filme ganha em dimensão psicológica.Os sintomas sociais estão todos lá:o desprezo pelo diferente,o conformismo mais grosseiro ao senso comum,e o que é mais assinalado por Van Sant,o erro de ver nessas perversões sociais a suposta normalidade das coisas.Todas as frustrações de nosso sistema social contemporâneo(e suas nefastas consequências psicológicas)são dissecadas nesse filme exemplar.Não espere uma narração convencional;Van Sant analisa a neurose de um país que ainda se pensa eleito,diferente de todos os outros;e é impiedoso ao dar seu diagnóstico:a sociedade americana (e o ocidente) está doente.Um filme desafiador,corajoso,inteligente,que não se perde em nenhum momento,que aponta e aperta a ferida do narcissismo exacerbado e doentio de nossa época.
Today is the last day that I'm using words They've gone out, lost their meaning Don't function anymore
Let's, let's, let's get unconscious honey Let's get unconscious honey
Today is the last day that I'm using words They've gone out, lost their meaning Don't function anymore
Traveling, leaving logic and reason Traveling, to the arms of unconsciousness Traveling, leaving logic and reason Traveling, to the arms of unconsciousness
Chorus:
Let's get unconscious honey Let's get unconscious Let's get unconscious honey Let's get unconscious
Words are useless, especically sentences They don't stand for anything How could they explain how I feel
Traveling, traveling, I'm traveling Traveling, traveling, leaving logic and reason Traveling, traveling, I'm gonna relax Traveling, traveling, in the arms of unconsciousness
(chorus)
And inside we're all still wet Longing and yearning How can I explain how I feel?
(chorus)
Traveling, traveling (repeat twice) Traveling, traveling, in the arms of unconsciousness
And all that you've ever learned Try to forget I'll never explain again
Sem dúvida,um dos melhores video-clips de todos os tempos,que custou(em 1993),US$5 milhões.Uma viagem psicodélica,um sonho(uma experiência médica?),com claras referências psicanalíticas e à pintura holandesa(Vermeer e Rembrandt).As cenas com a dança dos dervixes(super-estilizados),e a moderna medusa estão muito perto da antiga Beleza(com B maiúsculo).Prova que por mais que Madonna tenha seus detratores(que são muitos),ela está aqui para também produzir uma obra de alta qualidade,muito longe da atual baba dominante.
Para as Festas da Agonia Vi-te chegar, como havia Sonhando já que chegasses: Vinha teu vulto tão belo Em teu cavalo amarelo, Anjo meu, que, se me amasses, Em teu cavalo eu partira Sem saudade, pena, ou ira; Teu cavalo, que amarraras Ao tronco de minha glória E pastava-me a memória Feno de ouro, gramas raras. Era tão cálido o peito Angélico, onde meu leito Me deixaste então fazer, Que pude esquecer a cor Dos olhos da Vida e a dor Que o Sono vinha trazer. Tão celeste foi a Festa, Tão fino o Anjo, e a Besta Onde montei tão serena, Que posso, Damas, dizer-vos E a vós, Senhores, tão servos De outra Festa mais terrena Não morri de mala sorte, Morri de amor pela Morte. (imagem daqui)
Há escritores que cumprem um destino ideal de escritor.Além do estereótipo do rato de biblioteca sempre mergulhado em livros ou do artesão da palavra burilando à exaustão sua obra,existem aqueles que vivem o ideal do escritor como paixão,como razão de viver:que levam às últimas consequências uma decisão intelectual de unir vida e obra.Na história da literatura universal são vários os que escolheram a escrita como farol de vida e que a misturaram de tal forma com essa própria vida que seria impossível separar tal escritor desse fluxo constante que é gerado pela vivência da literatura como destino.Balzac,Dickens,Victor Hugo,Joyce,Virginia Woolf,e possivelmente acima de todos o grande e inimitável Jorge Luis Borges,passaram com tal intensidade,com tal brilho corruscante pela literatura e pela alta cultura,que seria impossível não defini-los como mestres supremos de seu ofício,ofício esse conectado indissoluvelmente à vida em si mesma.
Em nossa época conectada em tempo real,uma impossibilidade surge no horizonte:a impossibilidade da alta cultura ,da alta literatura ser vista como uma possível salvação pessoal.Muitos de nós talvez se perguntem :- essa possível salvação terá existido em alguma época da humanidade?Um Balzac atormentado com o destino de suas personagens ,um Charles Dickens deprimido por ter de 'matar' uma personagem ou uma Virginia Woolf vivendo vida literária /vida real em uma amálgama ,parecem expectros de um tempo distante.Mas creio que em nosso tempo,escritores continuam buscando explicar o mundo interior,independentemente de quaisquer eventos históricos externos.
Na Literatura Brasileira,entre os vários escritores que fizeram de seu ofício sua razão de viver,gostaria de citar a sempre presente Clarice Lispector,de quem Guimarães Rosa uma vez disse'que a lia não para a literatura,mas para a vida';e o poucas vezes citado (e quase nunca como merece),Caio Fernando Abreu .
Entre os muitos escritores que se formaram nos anos 60,Caio aparece como um imbatível corisco de luz,um desses escritores para quem a literatura era antes de qualquer coisa,uma missão,algo como uma idéia platônica,romântica,indissociável de sua própria vida(vide suas Cartas ). Desde seu primeiro livro-"Inventário do (Ir)remediável (1970),fortemente influenciado por Clarice,Caio misturou com maestria a contracultura,o sonho hippie desfeito,a 'libertação'pelo livre uso do corpo,da sexualidade,o fluxo da consciência,a loucura,a amargura tantas vezes existente nas relações humanas,a solidão inerente a todos nós:aliando a esses elementos uma feroz crítica social e especialmente psicológica,da coisificação do ser humano;uma análise contundente dos mecanismos mais repressores da sociedade brasileira e ocidental. Em sua obra destaco "Morangos Mofados"(1982),um marco dos anos 80,hoje uma obra premonitória ,que analisou o fim do sonho da contracultura,a ressaca mental dos anos 70 e o mergulho inicial no hedonismo desenfreado dos anos 80,cobertos de ponta a ponta pela sombra aterrorizante da AIDS,que pôs o ponto final e talvez definitivo,a qualquer 'sociedade alternativa'. Seus contos "Pela Noite" e "Aqueles Dois" são dos marcos da temática gay na literatura brasileira,nadando profundamente na análise psicológica e na crítica a uma sociedade pretensamente liberal,mas ainda cheia de dispositivos repressores crueis pronto a serem acionados a qualquer mudança real de paradigma. "Onde Andará Dulce Veiga"(1990-prêmio da Associação Paulista dos críticos de Arte),é além de uma homenagem ao 'país das cantoras',um mergulho fundo num Brasil tenso e muito vivo(o das grandes metrópoles),uma história de perdas e buscas,uma análise minuciosa da hipocrisia social brasileira,uma evocação da loucura que subliminarmente domina todo o tecido social.Dedicado 'à memória de Nara Leão,e a Odete Lara,Guilherme de Almeida Prado,Cida Moreyra e todas as cantoras do Brasil',é a história da fictícia cantora Dulce Veiga(um mistura de Elizeth,Elis e Dalva de Oliveira),que no auge da fama simplesmente desaparece sem deixar vestígios.Em uma São Paulo com ares da Los Angeles de Blade Runner,Caio nos leva numa ação crescente e frenética de pistas falsas,reviravoltas e todo tipo de situações e criaturas bizarras,até o desfecho lindíssimo e inesquecível.Obra de maturidade,Dulce Veiga é uma obra marcante ,testemunha de um Brasil muitas vezes barbáro(no pior sentido possível),mas que tantas vezes nos oferece pessoas e surpresas que mal acreditaríamos existir.Leiam e confiram. imagem daqui
A Menor mulher do Mundo é um conto emblemático de Clarice Lispector.Através dele podemos como que acompanhar a estrutura da escrita clariceana.É mesmo verdade,acredito,que quando dizemos ´'O que seria da literatura brasileira sem Machado de Assis,Guimarães Rosa e Clarice Lispector,estamos mesmo nos remetendo à própria grandeza literária dessa trindade,que paira sobre a nossa literatura como uma espécie de 'entidade tutelar'.
Clarice,em sua literatura,nunca se preocupa com o realismo das situações-não há uma história,no sentido convencional;o que importa é a análise interior das personagens,o arcabouço interno dos seres.Existe um ausência de enredo tal qual conhecemos;os 'acontecimentos'são meros pretextos para a análise psicológica das personagens.E mais interessante ainda,a própria análise dos fenômemos sociais ocorre dentro da mente das personagens.A literatura de Clarice é uma leitura também da solidão do ser humano,do desentendimento,do conflito mental.Os 'mapas mentais'clariceanos e sua 'veredas'são os ecos de um outro sertão,que não tão longe daquele de Rosa,nos falam do que sentimos,do que mostramos e também do que escondemos.
Em "A Menor mulher do mundo",o 'enredo'é a estória de um explorador francês,Marcel Petre,que encontra,em meio aos pigmeus do Congo,a menor mulher do mundo.Nesse conto,Clarice nos mostra seu gênio,encadeando análise psicológica com análise social de maneira magistral.A menor mulher do mundo,em todos os contextos é 'o outro',o diferente,o do qual se tem medo.As metáforas exprimem tudo-"como uma caixa dentro de uma caixa","escura como um macaco","o sonso perigo da África".As reações da menor mulher e do explorador são muito parecidas-ambos se identificam/se estranham em suas diferenças.Clarice enfatiza o fascínio que exerce a menor mulher do mundo-"Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros.Nem o homem mais rico do mundo já pôs os olhos sobre tanta estranha graça.Ali estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar".E começa a esmiuçat as reações à fotografia de' pequena flor' nos jornais.Uma mulher não quis olhar uma segunda vez"porque me dá aflição",outra sentiu tanta ternura que -"jamais se deveria deixar Pequena flor sozinha com a ternura da senhora.Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho."Uma mãe diz à filha-"(...)é tristeza de bicho,não é tristeza humana',diz outra mulher.Assim Clarice vai analisando os mais cruéis dispositivos sociais de exclusão do outro,do diferente,com suas hipocrisias inerentes e aparentes,seus desprezos pela igualdade na diferença.Clarice maneja as metáforas dentro de um espelho de preconceito social de uma maneira impressionante(que iria levar às últimas consequências em "A hora da estrela"),enfatizando que além de um ser social,os seres humanos são 'seres emocionais'.E nesse conto cheio de metáforas surpreendentes,Clarice nos diz como pode ser perigoso o medo da diferença,e o quanto a diferença também pode ser interessante e enriquecedora ou como diz a velha no final-"pois olhe,eu só lhe digo uma coisa:Deus sabe o que faz...".